Eu e a arte

 

 Tenho com a criação uma espécie de relação amor - ódio. E criar é simplesmente algo que tenho de fazer. Não busco necessariamente, nesta relação o prazer mas antes, alguma sensação de alivio. Embora, todo o processo seja, muitas vezes, uma autêntica tortura e só mesmo quando consigo acabar é que sinto um brevíssimo estado de quietude. Depois, tudo começa de novo e é como se não soubesse nada outra vez, como se não tivesse chegado a lado nenhum.

 Não procuro falar dos grandes males ou bens da Humanidade porque, na realidade, nada disso me interessa realmente. Falo antes de um qualquer estado contínuo que nunca cessa e que está comigo desde que me lembro de mim enquanto gente.

 Apaixono-me pela vida onde esta dobra e tudo me espanta no esquecido e no detalhe e esta tendência para criar não procura mais senão expressar o que muitas vezes não se vê, as entrelinhas, o desfasamento que as coisas tem entre si, o sitio onde as palavras não conseguem ir. É, de facto, uma busca inglória e até idiota, esta pelo entretanto mas, para mim, estes espaços invisíveis e de ninguém fazem ligação de todo resto visível, descritível, palpável ou mais concreto. Acredito piamente que é nestes espaços que encontro alguma verdade. Mas nunca chego a verdades absolutas e o meu esforço, o meu trabalho, resume-se apenas a uma expressão de procura, nunca afirmo nem dou certezas de nada. No vazio está a verdade mas, retirar todos os escombros e toda a tralha de que nos vamos preenchendo para chegar ao tal vazio é angustiante e enfrentar o vazio de frente é ainda pior, por isso, só consigo trazer pequenas partes ao de cima.

 Parece-me que, qualquer artista acaba por andar sempre em torno dos mesmos assuntos. Cada um, por mais temas que aborde, técnicas ou meios para o fazer, aborda sempre aqueles motivos que levam de facto a criar. Assim o é comigo também.

 Existe uma estranheza enorme da minha parte entre a consciência que tenho de mim e dos outros para com a realidade. Sendo  este desconforto sempre o que me leva à criação. É como se as coisas fossem por camadas (e essas eu vejo-as bem (?)) e que ninguém desse conta do espaço que há entre elas. Esses espaços estão cheios. E são esses com que sempre me preocupei. Ando, por isso, entre espaços e, inevitavelmente tempos, desde a origem de tudo à visão do grande final, focando-me sempre no Ser Humano. O que é isto de se ser Humano? Que espaço e que tempo ocupa o Homem no seu intimo? E que espaço e tempo são esses que ocupam cá fora na convenção do real? Estas são as questões que vivem sempre comigo e que, de facto, me estimulam o entendimento.

 O desenho ajuda-me a estruturar as coisas, a organizar lacunas, a sintetizar. E é pelo desenho que mais facilmente me organizo. No entanto, nem tudo pode ser desenhado, há coisas que não são possíveis de dizer através do desenho ou da pintura como, por outro lado, existe a mesma impotência na fotografia ou no vídeo. Vou assim, usando o meio que mais perto me leva daquilo que procuro.

 Quando abordo o Eu, de fora para dentro, uso quase sempre a fotografia, como meio mas, quando faço a analise do Eu de dentro para fora, quero dizer, na sua correlação com o exterior, uso mais frequentemente, o desenho ou a pintura. Isto porque, para mim, a fotografia funciona como reflexo, como espelho que obriga a ir para lá da imagem automaticamente reconhecida, a entrar na forma, a ir de encontro ao seu conteúdo, no seu interior.

 Já com desenho e com a pintura, só me atrevo a representar de dentro para fora que, por se encontrarem estruturados mas sem evidências, procuro que o seu conteúdo se concretize pelo assumir destes como parte de um todo e que este excerto possibilite a visão parcial da verdade que se encontra na relação do Homem com o espaço e o tempo em que este existe.

 Às vezes não sei para que vale concretizar este objectos, acho que o mundo já tem coisas que chegue, e depois também temos a fome, a guerra, a doença... e, por isso acho quase sempre despropositado fazer estas abordagens e, ainda por cima, chama-las de Arte (como que se no meio da desgraça ou do êxtase esta tivesse lugar) mas, quando acabo uma peça – se é que alguma vez se acaba – a quietude breve de que falei acontece, quando percebo naqueles instantes o sentido das coisas, das minhas e  de todo o resto e compreendo fugaz mas quase completamente o valor e o lugar da Arte. E é a ideia da próxima quietude que me empurra continuamente para a frente, que não me faz parar.

 

                                                                                                                                                     Teresa Gamito , Alverca, 2010